São Paulo — O apetite dos políticos por cargos no governo e pelo controle de estatais não é uma exclusividade brasileira. Também não é só no Brasil que isso costuma resultar em escândalos provocados pelo avanço de um grupo ou de um partido sobre o patrimônio público, como os casos que estão sendo revelados pelas investigações da Operação Lava-Jato.
Como evitar problemas assim? Um exemplo de medida para impedir a ocupação política de órgãos do governo vem do Chile. Lá, em 2003, foi criado o Sistema de Alta Direção Pública — seu pilar é um conselho cujo papel é selecionar profissionais qualificados para ocupar cargos na administração do Estado, diminuindo o peso das nomeações políticas.
A mudança fez parte de um pacote que buscava modernizar a máquina pública chilena, motivado por uma crise parecida com a enfrentada pelo Brasil nos dias de hoje.
Na época, os chilenos descobriram que uma de suas maiores construtoras superfaturava obras públicas e desviava parte do dinheiro para financiar campanhas de políticos e subornar funcionários do governo do então presidente Ricardo Lagos, eleito por uma coligação de partidos de centro-esquerda.
As investigações sobre o caso mostraram mais: deputados mantinham um esquema no qual cobravam propina de empresários em troca de ajuda para vencer licitações.
“O povo chileno tem uma incrível capacidade de se escandalizar”, diz Francisco Longo, professor de gestão pública da escola de negócios Esade, de Barcelona, e consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento que acompanha o Sistema de Alta Direção Pública desde sua criação. “Por isso, no Chile, as crises produzem consensos políticos que resultam em reformas.”
Um dos avanços do modelo chileno foi incluir os adversários do governo na escolha dos burocratas de alto escalão. Dos cinco membros que compõem o Conselho de Alta Direção Pública, dois são indicados pela oposição. Os conselheiros têm mandato de seis anos e estabilidade no cargo. Os atuais integrantes do conselho têm experiência em cargos na gestão pública chilena ou em órgãos internacionais.
De suas decisões depende, direta ou indiretamente, a seleção de profissionais para mais de 1 200 empregos públicos, o que corresponde a quase todos os postos de direção e coordenação abaixo dos níveis de ministro ou de vice-ministro — inclui-se aí a direção de estatais como a mineradora de cobre Codelco.
No ano passado, diretores de escolas públicas e secretários municipais de Educação também passaram a ser selecionados dessa forma. Não que o governo esteja proibido de escolher gestores sintonizados com sua linha de atuação. Mas o sistema chileno pelo menos impede que pessoas desqualificadas ocupem cargos importantes.
A seleção começa com a contratação, pelo Conselho de Alta Direção Pública, de uma empresa de recrutamento privada para conduzir um processo de seleção semelhante ao que uma empresa monta na busca de um executivo: abre inscrições para o cargo, faz a triagem do currículo dos candidatos e indica aos conselheiros aqueles que têm o perfil desejado para o cargo.
Em 2014, cada posto de gestão aberto no governo foi disputado por uma média de 140 candidatos. Quem passa pelo crivo dos recrutadores é entrevistado pelos membros do conselho, que escolhem de três a cinco nomes para compor a lista final, apresentada em ordem de preferência ao ministro e à presidente.
De estagiário a diretor
Com o critério do mérito, hoje são comuns os casos de gestores públicos chilenos que permanecem no cargo mesmo após mudanças no grupo que está no poder. Um exemplo é o de Josefina Montenegro, executiva que há cinco anos ocupa a Superintendência de Falências e Recuperação Judicial do Ministério da Justiça.
Ela atravessou o governo de centro-direita de Sebastián Piñera e foi mantida no posto após a chegada de Michelle Bachelet à Presidência. Josefina foi selecionada em 2010 — pesou na escolha a experiência de ter trabalhado em grandes escritórios de advocacia em Nova York. Ela não tinha conexões políticas. “Sem o Sistema de Alta Direção, não teria sido selecionada para o cargo”, diz Josefina.
É algo bem diferente do que ocorre no Brasil, onde os relacionamentos fazem a diferença. O governo brasileiro tem 24 000 cargos comissionados, como são chamados os postos preenchidos por indicação política, o triplo dos nomeados nos Estados Unidos.
No fim de agosto, o governo propôs extinguir 1 000 desses cargos e dez dos 39 ministérios — até o fechamento desta edição, nada havia sido anunciado oficialmente. Além do exagero no número, o compadrio é um critério de escolha frequente.
Recentemente, o líder do PMDB no Senado, Eunício de Oliveira, indicou o advogado Ricardo Fenelon Júnior, de 28 anos, para uma vaga de diretor da Agência Nacional de Aviação Civil. Sua principal experiência profissional é um estágio de um ano feito na agência. No início de julho, ele se casou com a filha de Oliveira, numa cerimônia que contou com a presença da presidente Dilma Rousseff.
“A experiência chilena mostra como escolher um gestor público com base em competências”, diz Regina Pacheco, coordenadora da área de políticas públicas na Fundação Getulio Vargas de São Paulo e ex-presidente da Escola Nacional de Administradores Públicos.
O modelo chileno é totalmente à prova de falhas? “Não. Ainda há formas de evitar a escolha de gestores pelo sistema, como fazer nomeações temporárias de dirigentes”, diz Rodrigo Egaña, presidente do Conselho de Alta Direção Pública.
Mas a avaliação é que a existência do Sistema de Alta Direção torna mais difícil colocar gestores em cargos apenas segundo interesses políticos. Recentemente, Bachelet enviou ao Congresso um projeto de lei que pode fechar as brechas ainda existentes. Ou seja, mesmo já tendo um bom sistema, os chilenos querem mais. Já o Brasil…
Fonte: http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/1097/noticias/no-chile-cargo-publico-e-coisa-seria